É uma honra receber este PRÉMIO LITERÁRIO AICL AÇORIANIDADE 2013 com o meu CHAPÉU DE CHUVA TRANSPARENTE, CRÓNICA DE UM AMOR SEM LIMITES. Segundo pesquisei, o conceito de "Açorianidade literária" foi definido por Vitorino Nemésio, na revista Insula, em 1932 e, desde então, foi amplamente divulgado em contextos bem diferenciados, desde estudos de âmbito literário a intervenções de ordem política. Este meu conto/narrativa nasce precisamente da arte de captar as características intangíveis e indefiníveis da Açorianidade e do sentimento de insularidade, expressos através de uma mundividência peculiar, visíveis através do sentimento de angústia metafísica ou de um «je ne sais quoi» existencialista, ou do tal sentimento do emparedado, ante a solidão e a distância.
A
partir da minha ilha interior transporto-me para qualquer ilha física ou
imaginária. Enquanto autora, viajei pelas ilhas açorianas; Madeira; Reino
Unido, Japão e por ilhas da China. A insularidade cresceu em mim,
literariamente, mas sobretudo na alma, e sobrepôs-se às minhas vivências. Nesta
narrativa, o sentimento insular mescla-se com fragmentos biográficos da
infância, recria-se numa ficção biografada e cresce com as personagens. As
personagens, no entanto, quase que se descartam em prol das emoções,
assumindo estas o controlo da narrativa e tornando-se, elas próprias – as
emoções - personagens principais de uma história sem fim.
Esta crónica é uma viagem aos lugares da infância,
reais e imaginários, sentidos e inventados; uma viagem num só fôlego e sem
regresso. Em CHAPÉU DE CHUVA TRANSPARENTE não há regresso do crescimento nem
da morte quando morre a mãe e a alma gémea do narrador. A morte na ficção, por
vezes, pode ser mais cruel do que na própria vida, e por isso, estas mortes
roubam toda e qualquer esperança ao narrador-personagem. E não há mais
esperança senão a de continuar a respirar, rodeando-se de amor. CRÓNICA DE UM
AMOR SEM LIMITES é, pois, o subtítulo, ancorando-se num chapéu de chuva
transparente que atravessa toda a história e simboliza uma protecção
insuficiente mas dinâmica; afinal, o retrato da vida humana.
Aqui,
a expressão do sentimento de insularidade afirma-se numa tríade de emoções que
toma forma numa tríade de ilhas: a ilha vulcânica onde a criança é exilada; a
ilha interior que emerge do sentimento de abandono da criança face à ausência
da mãe; e por fim, a ilha-promessa ou ilha-utopia, que é o lugar onírico onde a
criança se reunirá com o seu alter-ego e que simboliza a visão salvífica do
inferno na terra. Porém, a ilha-utopia não chegará a encontrar o seu topos, o seu lugar real. A vida e esta
história encarregam-se de apagar esse sonho quimérico. Resta o sentimento
latente de insularidade, moldando personagens dentro de personagens, votando-as
ao abandono, à solidão, mas lançando-as numa esperança que nasce aqui de um
passado já vivido.
«
A casa da ilha era o desterro onde vivia a outra avó a avó da ilha. Antes da
avó do norte ou das camélias eu tinha sido despachada para a ilha uma espécie
de prisão provisória mas onde havia umas tias boas de mais para serem verdade.
Na verdade a Teté e a Dé eram demasiado boas apenas para aliviarem em mim o
sentimento de exílio e o sofrimento a ele adjacente. Na realidade não se
tratava de um exílio era mais como se fosse uma morte em vida o que equivale a
perder a mãe quando ainda se é demasiado criança para se compreender seja o que
for. Mãe é respirar é viver é ser. Eu a era a morte em vida da minha mãe.» in Chapéu de Chuva Transparente (...)
Quando visitei os Açores há uns anos, senti-os de
imediato como um local mágico que tinha de escrever. Escrever os Açores é
recuperar a alma, respirar e logo a seguir perder o fôlego. É preciso escrever
os Açores como todas as ilhas dentro de nós. Por isso, a partir da minha ilha
interior transporto-me para qualquer ilha física ou imaginária. O escritor
precisa de transformar o que vê e o que sente em palavras, para finalmente poder
respirar e encontrar paz. Antes de escrever esta narrativa, eu não sabia que o
que sentia era… AÇORIANIDADE.
«A casa da ilha fica fechada entre as
montanhas que a encerram como se fossem quatro paredes e mais algumas por
detrás das primeiras. Sinto um vulcão respirar entre aquela massa montanhosa
escura como se toda a solidão do mundo coubesse ali dentro das nossas vidas.
Olha-se à volta e não se vê mundo, não há horizonte apenas prisão e uma grande
falta de ar. A Dorinhas está outra vez com ansiedade custa-lhe a respirar diz a
Teté anda vamos rezar ao Menino Jesus. E ali habita uma sucessão de gerações de
mulheres sobreviventes de uma ilha sem salvação. A única coisa possível é o
amor entre elas mas os dias sucedem-se com uma banalidade demolidora e o amanhã
não é redentor para ninguém. Á volta da casa o quintal à volta do quintal os
campos de vinha à volta das vinhas as montanhas e à volta das montanhas das
montanhas o mar. O mar isola-nos inexplicavelmente de uma maneira que só é
possível sentindo o choro da alma. A Dorinhas está outra vez com ansiedade
custa-lhe a respirar diz a Teté e então a avó da ilha sorri e coloca-me a mão
no peito e murmura palavras estranhas com odor a rapé. As palavras murmuradas
entredentes pela avó da ilha parecem uma lengalenga mágica e a partir desse dia
a escuridão da montanha já não era tão escura embora nunca deixasse de ser
montanha. A avó da ilha também era uma ilha dentro duma ilha.» in Chapéu de Chuva Transparente (...)
Nesta narrativa quase tão mágica quanto as palavras
sibilinas murmuradas por uma avó mistério, as palavras são como um berço que
embala a criança que chora. No meio do silêncio, só as palavras podem calar o
uivo do choro jamais libertado, só as palavras livres e independentes podem
conferir alguma liberdade a tal condição de isolamento e desolação. Por isso,
as palavras são criadas ao sabor do medo e da esperança; surgindo de ímpetos
arrancados como que do fundo do peito. Por essa razão, surgem nesta narrativa
neologismos livres e uma sintaxe redentora, assim como uma grafia rebelde e
experimentalista. Perante a cadência das emoções, que marcham ao longo de uma
narrativa que se pretende livre, é premente remover todos os obstáculos do
caminho, tais como vírgulas, pontos, parágrafos, travessões de diálogo e pontos
de interrogação. O discurso emana duma interrogação permanente e as palavras
são aqui a salvação da alma.
Para mim, enquanto autora, a grafia rebelde e
experimentalista passou aqui pela experimentação da utilização do AO/90 (acordo
ortográfico de 1990) como paradoxal e irónica forma de protesto. Aqui, o uso do
AO/90 serviu como forma de exorcizar barreiras entrando num mundo novo, mas sem
alicerces e descartável. Afinal, todas as palavras são descartáveis depois de
derramadas as lágrimas, depois de atiradas as palavras contra as paredes do
vulcão que sufocam a criança na ilha.
O discurso fluido e sem pontuação, assim como as
palavras destituídas de consoantes mudas e de hífenes, assumem uma fluidez para
além das normas do latim e do espartilho da etimologia; a semântica sobrepõe-se
às regras gráficas, ortográficas e de pontuação, dominando em força e
reforçando o seu domínio através de neologismos criados directamente através da
força emotiva que as expele.
Esta é pois uma narrativa que transcende todas as
normas, à semelhança do estado de desvantagem – ou será de vantagem? – em que o
sentimento de insularidade coloca o sujeito. E é porque esta narrativa
transcende todas as normas, que a utilização do AO/90 e a escrita livre
saramaguiana tomam valor de recurso
estilístico, expressando uma escrita livre ou libertária, pois destituída
de pontuação, de indicação de diálogos e das próprias raízes da etimologia
clássica.
O assumido caos ortográfico demonstra a inquietude das
emoções/personagens principais; um caos que retira palavras do seu
contexto etimológico e cultural, rompendo ligações com as raízes gregas e
latinas da língua, impondo a desfragmentação da língua portuguesa, na sua
variante europeia. Perfila-se aqui um símbolo do desabar da matriz linguística,
qual referência a uma mãe perdida. A morte da mãe, fatal nesta narrativa,
radica em todos os aspectos do desabamento da infância, da vida, da família, da
Língua, da ortografia.
Comecei a escrever CHAPÉU DE CHUVA TRANSPARENTE e não
sabia que o texto viria ter comigo sem pontuação nem que me faria
experimentalista do AO/90 – eu que me afirmo contra o absurdo decepar de
consoantes com sua indispensável função diacrítica. Quando esta narrativa se me
impôs para que eu a escrevesse, não sabia que viria sem vírgulas, sem pontos,
sem diálogos e sem consoantes mudas. É um lugar-comum dizê-lo, mas fui
escolhida como intermediária desse processo literário que ultrapassa sempre o
seu autor – e que normalmente tem sempre algo de importante a dizer ao autor.
Fui empurrada pela catarse da criatividade literária, mergulhando num
limbo de memórias, ficções e emoções onde não existe espaço para a pausa nem
para a vírgula. Assim, os diálogos surgem dentro dos pensamentos e os
pensamentos surgem entrelaçados com as falas de episódios de uma história que
se enreda em tantas. Esta libertação de todas as amarras, linguísticas,
sintácticas e ortográficas é a própria força do processo criativo, porquanto
rebenta com essas mesmas amarras, experimenta ser um ser diferente, ignora os
dogmas e pretende apenas… respirar por entre linhas.
«Se outros tantos autores sagrados ou
apenas consagrados podem porque é que eu não hei de poder? Se inventam palavras
as torcem e distorcem refazem a sintaxe recriam a vida e as emoções nas frases
que dedilham porque hei de eu ser alertada olhe que isto não se escreve assim
vou dizer ao revisor para cortar você não pode escrever piqueno nem inventar
desgramado essa palavra não existe e onde está a pontuação a senhora julga-se alguma
sara maga? Ora não só posso como escorraço qualquer revisor que se aproxime do
meu texto. O texto é meu das minhas entranhas do meu sopro do meu pulsar. Não é
nenhum corpo para um revisor autopsiar. Ou não me chame eu Ricardo e tenha um
projeto a dois para inventar um país. E antes que me venham impor um acordo
ortográfico aqui está ele ainda mais papista do que o papa para que provem do
vosso veneno. Esta é uma viagem às emoções humanas e cada paragem são episódios
de uma vida que são tantas. Quem não quiser embarcar é desde já convidado a
sair.» in Chapéu de Chuva Transparente
(...)
É pois uma honra receber este prémio
literário, em nome da literatura e da lusofonia, porque valorizo uma lusofonia
cuja maior riqueza são as múltiplas diferenças e a unidade na diversidade. A
riqueza da Língua portuguesa enquanto versão europeia releva do carácter
histórico e etimológico que nos liga às línguas clássicas, unindo as famílias
de palavras e fazendo sentido na sua fundamentação ontológica. Por outro lado,
a riqueza do Português enquanto versão brasileira releva do seu carácter
inovador, demiurgo de palavras e expressões culturais únicas e por isso mesmo,
regionais e específicas. Não queiramos ler um Saramago escrito em Português do
Brasil nem um Jorge Amado aportuguesado. Não quero ler Pepetela com sotaque de
Cascais nem Mia Couto com ortografia proveniente de uma utópica pronúncia
culta. A riqueza da Lusofonia é a sua idiossincrasia, não uma Língua de lei que
foi resolvida em conselho de ministros e nasceu numa fábrica ortográfica. A
Língua é um organismo vivo, sujeito à evolução por via erudita e popular; não
faz sentido descaracterizá-la numa unidade das escritas lusófonas,
destituindo-a de tudo o que tem de único e diferente. É único e não-formatável
o maravilhoso Português de Angola, o de Moçambique, de Cabo Verde, de São Tomé
e Príncipe, de Goa, de Timor, de Macau e do Brasil – assim como o são as 18 variantes do Inglês, nenhuma delas silenciada com a unificação ortográfica. A
matriz da língua é a garantia de que essa diversidade poderá remeter-se à
unidade sem que incorra no abismo da descaracterização da Língua. Há que
preservar a matriz.
É, por fim, uma honra receber este PRÉMIO LITERÁRIO AICL AÇORIANIDADE das mãos da AICL, ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DOS COLÓQUIOS DA
LUSOFONIA”, cujos princípios e objectivos são «um movimento cultural e cívico
que visa mobilizar e representar a sociedade civil de todo o mundo, para pensar
e debater amplamente, de forma científica, a nossa fala comum: a Língua
Portuguesa.» E afirma no ponto 6.
«Em defesa da Lusofonia, defendemos a nossa identidade como pessoas e povos, e
em prol da variada língua comum com todas as suas variantes e idiossincrasias,
impedindo que outras culturas e outros povos nos dominem cultural, económica ou
politicamente, como alguns, ostensiva e claramente, defendem.»
Bem-haja aos defensores da Língua portuguesa, da
Lusofonia e de todas as suas variantes e idiossincrasias, na preservação da
matriz da Língua portuguesa, viva e múltipla. Viva a literatura. Viva a Língua
portuguesa. Obrigada.
Maria
Saraiva de Menezes
Lisboa, 18 de Outubro de 2013
NOTA: A
autora escreve de acordo com a antiga ortografia de 1945. Contudo,
neste livro, a autora escreve segundo o novo acordo ortográfico de 1990,
paradoxalmente, como forma de protesto. A sintaxe livre, ausência de pontuação
e de indicação de diálogos são também, aqui, opção da autora.
SINOPSE: Maria das Dores, fidalga decaída em solidão e abandono, é uma psicoterapeuta que se auto-analisa através dos seus pacientes. Diariamente no fio da navalha, apenas se salva através da tábua da memória. Porém, tudo o que é passado é morte e por isso, todos os anos "é Natal e isso dói mais do que uma dor física". Maria das Dores tem vários nomes ou nenhum, e também foi um rapaz chamado Ricardo, mas às vezes ainda passa por isso. A personagem nunca teve mãe e talvez por isso lhe custasse respirar. A ilha é o abandono dentro de si, como uma bóia meio-vazia, à deriva. Maria das Dores recuperou a sua identidade só até ter perdido para a morte a única pessoa capaz de a salvar. E como à infância sucede a fase adulta, tenta não esquecer a chucha nem o ratinho perdido.
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